A 11 de Outubro, celebrando o sexagésimo
aniversário da abertura do Concílio Vaticano II, o Papa Francisco disse: «O Concílio
recorda-nos que a Igreja, à imagem da Trindade, é comunhão. Em vez disso, o
diabo quer semear a cizânia da divisão. Não cedamos às suas adulações, não
cedamos à tentação da polarização. Quantas vezes, depois do Concílio, os cristãos
se empenharam por escolher uma parte na Igreja, sem se dar conta de dilacerar o
coração da sua Mãe! Quantas vezes se preferiu ser “adeptos do próprio grupo” em
vez de servos de todos, ser progressistas e conservadores em vez de irmãos e
irmãs, “de direita” ou “de esquerda” mais do que ser de Jesus; arvorar-se em “guardiões
da verdade” ou em “solistas da novidade”, em vez de se reconhecer como filhos
humildes e agradecidos da santa Mãe Igreja», disse o Papa, segundo o
qual «nem o
progressismo que segue o mundo, nem o tradicionalismo – o “retrogradismo” – que
lamenta um mundo passado são provas de amor, mas de infidelidade.»
Como faz frequentemente, o Papa Francisco insinua, alude, mas não esclarece as
suas palavras. Teria sido melhor se o Papa tivesse definido claramente os erros
a que se refere e tivesse chamado pelo nome os responsáveis pelos erros que
denuncia. Mantendo-se vago, alimenta aquela cultura de suspeitas, aqueles
venenos e aquelas controvérsias que indica como males na Igreja. Quem são, de
facto, os tradicionalistas e os progressistas a que se refere?
O mundo que se define habitualmente como tradicionalista, actualmente apresenta-se
tão fragmentado e complexo como o mundo progressista, ao qual o próprio Papa
Francisco pertence. É muito difícil saber quem são e o que pensam, hoje, tradicionalistas
e progressistas. É mais fácil saber quem eram os progressistas e os conservadores
na época do Concílio Vaticano II. Os progressistas estavam convencidos de que o
Vaticano II iria desmantelar os bastiões litúrgicos, teológicos e morais da
Igreja constantiniana, e dar início a uma nova Primavera da Igreja. Os conservadores
advertiam contra estas ilusões, mostrando os perigos de uma abertura
indiscriminada ao mundo. Os conservadores pediam, por exemplo, a condenação do
comunismo, enquanto os progressistas, convencidos de que a humanidade caminhava
nessa direcção, defendiam a política da mão estendida.
Quem teve razão? A Igreja conseguiu evangelizar o mundo ou houve uma
contra-evangelização, da parte do mundo, para com a Igreja? A sociedade é mais
evangélica ou é mais mundana do que era há sessenta anos? O Papa Francisco
deplora frequentemente a «mundanização» da Igreja, mas será que este processo
não teve início, ou pelo menos um grande desenvolvimento, precisamente a partir
do Vaticano II?
A discussão sobre se os documentos do Concílio Vaticano II foram implementados
ou traídos é completamente irrelevante. O que importa são os resultados e não
se pode negar que foram desastrosos para a Igreja. Após sessenta anos, obstina-se
em ignorar os resultados do Concílio Vaticano II, para falar de um Concílio
ideal, que nunca teve lugar, do Concílio não como foi, mas como deveria ter
sido.
Quais foram os resultados? Permitam-me citar uma passagem do meu livro “Il
Concilio Vaticano II. Una storia mai scritta” (Lindau, Turim, 2011, p. 575)[1].
«O colapso da segurança dogmática; o relativismo da nova moral permissiva; a
anarquia no campo disciplinar; o abandono do sacerdócio e da vida religiosa da
parte de sacerdotes e religiosos, e o afastamento da prática religiosa de
milhões de fiéis; a infiltração da heresia através dos novos catecismos e dos novos
ritos; as contínuas profanações da Eucaristia; o massacre das almas à medida
que as igrejas se livravam de altares, balaustradas, crucifixos, estátuas de
santos, mobiliário sagrado, quadros que acabaram em armazéns de antiquários. A “Primavera
da fé”, que deveria seguir-se ao Concílio Vaticano II, aparecia como um Inverno
rigoroso, documentado, sobretudo, pelo colapso das vocações e pelo abandono da
vida religiosa.»
O quadro teria, naturalmente, de ser actualizado, até à Pachamama e ao Sínodo
dos bispos alemães.
Tudo isto nada tem que ver com os documentos do Vaticano II? Mas se houve uma
interpretação falsa e abusiva dos documentos do Concílio, de quem é a
responsabilidade? Apenas dos maus hermeneutas ou não também dos documentos que,
devido a equívocos ou a ambiguidades, permitiram esta má leitura? Apenas dos
maus hermeneutas ou não também das autoridades que não condenaram com
suficiente firmeza as más interpretações?
E se uma interpretação falsa e abusiva dos documentos do Concílio prevaleceu
nos meios de comunicação social, de quem é a responsabilidade? Apenas dos meios
de comunicação social ou não também do acontecimento histórico que estes
documentos produziram? Será o Concílio Vaticano II, como acontecimento,
estranho à crise do nosso tempo?
O evento; os documentos, ou pelo menos alguns dos documentos que este evento
produziu; os homens da Igreja que promoveram o evento e que deste acontecimento
trataram da aplicação e propõem a interpretação, até, infelizmente, ao actual
Pontífice reinante. Estes são os responsáveis pela actual crise da fé.
O Papa Francisco evocou o diabo, que hoje quer semear as ervas daninhas da
divisão dentro da Igreja. Mas já em 29 de Junho de 1972, num seu célebre
discurso, Paulo VI advertia sobre a «fumaça de Satanás» que entrou no «templo
de Deus». Passaram-se cinquenta anos e, no templo de Deus, a fumaça de Satanás
é sufocante, mal se consegue respirar. Por que fenda entrou, e quando ocorreu,
se não por ocasião do acontecimento que o Papa Francisco, de maneira triunfal,
celebrou?
[1] “O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita”, Caminhos Romanos, 2012, Porto.
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